sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Xan


Numa tarde quente em setembro de 1988
Dois caças da força aérea brasileira cruzam o céu daquele início de primavera
Meu pai com sua bermuda verde e regata amarela ajustava os fios que atravessavam o quintal até em casa
Céu azul e reflexo do sol alaranjado, 
Minha mãe não chegara do trabalho, eram umas 14hs da tarde 
Eu com meus soldados e carrinhos no chão, camisetinha do super homem, bermudinha de moletom preta, ajoelhado e mirando o cachorro Snoopy em sua casinha, o calor o deixava entediado.  
Ouvi a Dona Enedina com o papagaio discutindo problemas sociais
e sua filha Paulinha, era linda, estendia roupas no varal do corredor, abaixava pra pegar mais no balde, que visão... depois de anos fui entender
O corredor que segue para o portão baixo e os muros com ornamentos triangulares
da minha casa consigo ver os prédios, pra mim, um pequeno garoto, pareciam gigantes deuses protetores do meu futuro. Dava pra ver a casa do outro lado da rua, uma casa sem revestimento, apenas os tijolos cor de terra, lá morava um senhor alemão, não gostava de visitas, era rabugento... 
Minhas roupas limpas secando no varal eram ganhas dos vizinhos, eu conheço bem meu passado, conheço muito bem o passado dos meus pais e sei qual foi minha herança, apenas a dignidade de continuar a crescer...
O meu pai com a fábrica de sonhos no quintal, atendia seus amigos que saíam um pouco menos feios apos o trabalho bem feito dele, cadeiras com ajuste e espelhos, um sofá, algumas revistas (aquelas revistas), o lavatório, a mesa com vários livros, uma caixa de som, a janela que dá para o quarto...
no quarto a estante de bambu...
A penteadeira e as gavetas com galáxias semi-novas, e anéis de saturno guardados em universos seguros... o radio relógio marca 19 horas em números quadrados e vermelhos, quando despertava era o radio que tocava, o noticiário das manhãs... “pra onde será que vou?” é meu pensamento...
As camas, a de casal, a de solteiro, e o meu colchão no chão, é onde eu sonhava com futuros amores e casas feitas de ferro e barro, homenzinhos trabalhavam nos lençóis empurravam os carros de cima dos travesseiros, a T.V. exibia filmes de ficção e meu pai chorava pra eu não olhar, sou novo, o chão de madeira com um espaço de meio metro com uma cidade subterrânea, mal conseguia dormir com tanto barulho e poluição... acordava 7 da manhã pra assistir o movimento das sombras das paredes e telhados no quintal e o Snoopy cantando para as formigas. Aquele cheiro de verão...
As formigas caminhavam no canto das paredes em sentido ao prédio atrás do portão de madeira, imaginava essa pequena cidadezinha de anteninhas conversando entre si...
Um barulho no portão, e meus bracinhos iam em direção ao pescoço de minha salvadora mãe...
Nos natais contava luzes coloridas, ao mesmo tempo em que ouvia o som vibrante na cozinha com suas batidas vertiginosas e ainda um gosto novo por vir sobre atitudes agressivas e guerras de hormônios,
A vizinha com seus pezinhos em cima do carro de seu pai me convidava para uma brincadeira nova, onde meu coraçãozinho novo batera mais forte perto do dela... amor...
Lembro da única festa de rua, a fogueira, as comidas e bebidas, música alta e vizinhas com suas perninhas abaixo das saias pra lá e pra cá exibindo um tesouro quase escondido, pequeno eu tinha que dormir cedo...festa, onde descobriram meu defeito no jeito de falar que mais tarde foi consertado com muito esforço...
Não são segredos sobre alguém em especial,
São verdades incontestáveis
O sorriso dela me fazendo brilhar os olhos com o real amor de filho, a admiração do super-herói de jaqueta marrom com suas tesouras e pentes...
O outro pequeno que me seguia, ia onde eu ia, cantávamos juntos enquanto as partidas passavam na T.V. em preto e branco...
Noite chuvosa com muitos lagos descendo pelos ralos do quintal...
E ela arrumava a casa pra deitarmos em condições favoráveis pra uma outra brincadeira, irmã mais nova dela...
Paulinha com o mel no rosto e as espinhas, e eu sempre ria, e ela sempre apertava minhas bochechas com força...
Dona Regina prepara o café com leite e coloca na mamadeira, estou sentado no sofá apertando os dedos dos pés esperando dar a hora de ir pra escola
E ele dorme resmungando com os travesseiros
Ela me chamava de Xan...
E eu sigo em direção à escola...
E hoje não me chama mais...
Sigo em direção ao trabalho,
Estou calibrando melhor meu foguete...
E eu hoje sigo em direção à luz... ...